O dinheiro de nossos fundos de pensão é dono de parte importante das grandes empresas chilenas.
Qual é a maior força econômica do Chile hoje? Luksic, Matte? Piñera, Paulmann? Angelini, Solari?
Não. É você. Ou melhor, você, eu e os outros 10.099.816 chilenos que estamos associados a alguma AFP.
Não acredita em mim? É uma questão de números, simples assim. A poupança dessas contas – que, como se insiste descaradamente, pertence aos poupadores individuais e a ninguém mais que a nós mesmos – somam $112.673.743.000.000. Ou seja, mais de 112 bilhões (milhões de milhões) de pesos. Ou, se preferir em moeda forte, 171 mil 89 milhões de dólares (US$171.089 milhões) (confira o relatório da Superintendência de Pensões).
Este montante gigante, inabalável, transforma em anões econômicos até as maiores fortunas do Chile, segundo o ranking da Forbes: os Luksic (US$ 10.100 milhões), Paulmann (US$3.700 milhões), Piñera (US$2.500 milhões) e os Matte (US$2.300 milhões). Na realidade, mais que duplica a fortuna do homem mais rico do mundo, Bill Gates (US$75 mil milhões segundo a Forbes).
Sabemos que dinheiro é poder. E que – o Chile mostra isso diariamente – as grandes fortunas no nosso país se traduzem quase automaticamente numa gigantesca capacidade de fazer lobby, influenciar na legislação e obter regulação a pedido. Por que, então, os donos do maior poder econômico do Chile contemporâneo sentem-se impotentes, como demonstraram quando as ruas foram tomadas pelos protestos contra o sistema das administradoras de fundos de pensão?
Aí está a genialidade do sistema. As AFP são um formidável instrumento para tirar o poder do Estado e entregá-lo, não aos seus legítimos donos, mas aos donos das empresas que os administram. E não é um efeito colateral. É uma consequência premeditada. Em seu livro El cascabel al gato: la batalla por la reforma previsional, o criador do sistema, José Piñera, comemora porque sua criação “significou uma diminuição gigantesca do poder politico do Estado sobre a economia”. A mudança “foi o equivalente a privatizar várias dezenas das empresas que efetivamente passaram ao setor privado”.
A armadilha é que o trabalhador–proprietário é um empresário sem o poder que essa propriedade deveria entregar-lhe. Esse poder é captado por outros: pelos donos das AFP. Ao desenhar o sistema, Piñera descartou que os fundos fossem gerenciados por cooperativas, ou “entidades jurídicas novas, constituídas pelos próprios contribuintes”.
As AFS seriam, nas palavras do então ministro do Trabalho, “empresas com dono”.
Um dono, é claro, bem diferente do legítimo proprietário dos milhares de milhões de pesos que dão um enorme poder a essas empresas.
Esse poder não é apenas faz de conta. É um poder muito concreto. O dinheiro de nossos fundos de pensão (nosso dinheiro) é dono de parte importante das grandes empresas chilenas, já que escolhe os diretores delas e define seu governo corporativo. Tem voz e voto em quais projetos priorizam, quais normas trabalhistas e ambientais respeitam, ou como fiscalizam para que a empresa não viole a lei.
Tudo isso, eles fazem sem lhe perguntar, nem lhe consultar.
Parece incrível, mas é real. Nós (eu, você e outros 10 milhões de chilenos) somos os donos de boa parte de megaempresas como Cencosud (16,55%), Colbún (17,63%), Endesa (15,33%), Enersis (12,69%) e CMPC (11,58%).
Uma empresa da qual nós somos em parte donos, como CMPC, se envolve em conluio e mete a mão no nosso bolso com o caso do cartel do confort (*). Outra, também parcialmente de nossa propriedade, a Cencosud, faz reparações unilaterais violando a lei e mete a mão no nosso outro bolso.
Poderia ser diferente? Claro que sim. Alguns exemplos estão no meu livro Poderoso Caballero, que se aprofunda nesse assunto.
O canadense Ontario Teachers’ Pension Plan Board (OTPP) inclui a 182.000 professores da província de Ontário, com 129.000 aposentados e um retorno anual em média de 10,2%. Mas faz mais do que isso: sua diretoria, nomeada pelo sindicato de professores e pelo governo de Ontário, deve cumprir normas de investimento responsável, respeitando princípios socais, trabalhistas e ambientais. Como seus investimentos lhe dão o poder de nomear diretores em diferentes empresas, o OTPP deve promover nelas uma série de princípio estritos que vão desde o tamanho das direções (entre seis e quinze integrantes), a separação de papeis entre direção e administração, indenizações limitadas para seu corpo executivo, a oposição a contratos blindados para seus gerentes, etc.
A Pension Danmark (PD) é outro exemplo. Com 660.000 associados, esta organização sem fins lucrativos da Dinamarca investe buscando alta lucratividade, mas também segue uma minuciosa política ética, que lhe proíbe de colocar o dinheiro de seus integrantes em companhias que “desrespeitem leis e regulações”, ou que “atuem irresponsavelmente, ou sem consideração com o sentimento da opinião pública”. As companhias também devem adotar políticas de respeito aos direitos trabalhistas, ao meio ambiente e aos direitos humanos.
O que aconteceria se as AFP chilenas tivessem diretorias responsáveis perante seus contribuintes, obrigados a aplicar regras como essas?
Em vez disso, desde a sua criação, as AFP transformaram-se no refúgio preferido da elite político-empresarial, primeiro na ditadura...
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Cargo na ditadura |
Cargo em AFP |
Alfonso Márquez de la Plata |
Ministro da Agricultura, Governo e Trabalho |
Diretor da AFP Provida |
Jorge Cauas |
Ministro da Fazenda |
Presidente da AFP Provida |
Miguel Schweitzer |
Ministro da Justiça |
Diretor da AFP Santa Maria |
Álvaro Bardón |
Presidente do Banco Central |
Diretor da AFP Invierta |
Fernando Léniz |
Ministro da Economia |
Presidente da AFP Summa |
Jorge Prado |
Ministro da Agricultura |
Presidente da AFP Plan Vital |
Sergio de Castro |
Ministro da Fazenda e Economia |
Presidente da AFP Provida |
Miguel Ángel Poduje |
Ministro da Habitação e do Governo |
Vice-presidente da AFP Provida |
Luis Larraín |
Ministro de Desenvolvimento Social |
Diretor da AFP Habitat |
Guillermo Arthur |
Ministro do Trabalho |
Presidente de la Asociación de AFP |
Martín Costabal |
Ministro da Fazenda |
Gerente geral da AFP Habitat |
Álvaro Donoso |
Ministro de Desenvolvimento Social |
Diretor da AFP Provida |
E, logo depois, também com a Concertación... Julio Bustamante trabalhou no Grupo Cruzat, formando as AFP Alameda e Unión (incorporada em seguida à Provida). Ao chegar a democracia, assumiu como superintendente de AFP, de 1990 a 2000. E, em 2002, tornou-se presidente da AFP Magister (quando era da Inverlink), dando a volta completa na porta giratória. Logo, em 2011, aliou-se novamente à Cruzat para formar uma nova AFP, Sur, cuja constituição foi rejeitada pelas autoridades.
Em 2006, quando o primeiro governo de Michelle Bachelet preparava a reforma da previdência, a AFP Provida reforçou sua direção com personalidades da Concertación. Entrou Ximena Rincón, que seis semanas antes era administradora de Santiago. Como diretora da Provida, foi escolhida vice-presidente da Democracia Cristiana e foi pré-candidata à prefeitura de Santiago. Quem também se incorporou à direção da AFP foi o ex-presidente da Câmara dos Deputados, José Antonio Viera-Gallo, do PS, que acabava de deixar sua cadeira no Senado.
Outros nomes ilustras da Concertación que entraram no mundo das AFP são o ministro da Economia de Aylwin, Jorge Marshall (PPD), como diretor da Provida; o ministro secretário geral do Governo de Lagos, Osvaldo Puccio (PS), diretor suplente na Provida; o ministro da Economia de Bachelet, Hugo Lavados (DC), presidente da Cuprum, e a subsecretária da Fazenda de Lagos, María Eugenia Wagner (DC), diretora da Cuprum.
O trabalho é, sem dúvida, atraente. Pelo menos 24 ex-integrantes da Concertación – ministros, subsecretários e superintendentes – inscreverem-se na lista da Superintendência de Pensões como candidatos a serem apoiados pelas AFP para entrar na diretoria das empresas em que as seguradoras têm representação.
O cargo também deixou tentados ex-integrantes do gabinete de Sebastián Piñera, que fizeram parte do registro de candidatos a diretores, como o ex-titular da pasta de Energia, Ricardo Raineri (RN), e da Economia, Pablo Longueira. Hoje, o garoto propaganda em defesa do sistema é o ex-ministro da Habitação, Rodrigo Pérez Mackenna, presidente da Associação de AFP.
E há outro vínculo político. A AFP Cuprum fez doações privadas em todas as campanhas eleitorais entre 2004 e 2012, enquanto permanecia sob o controle de Carlos Délano e Carlos Lavín: municipais de 2004, 2008 e 2012; e presidenciais e parlamentares de 2005 e 2009. Em 2013, o Grupo Penta vendeu a Cuprum ao grupo estadunidense Principal.
As doações da AFP Cuprum, assim como das isapres Banmédica e Vida Tres, também do Grupo Penta, e as da Colmena (2005), têm algo em comum: são de empresas cuja renda vem de pagamentos por previdência social aos trabalhadores chilenos. Isso significa que uma parte dessas contribuições compulsórias foi secretamente destinada a financiar campanhas políticas, partidos ou institutos de formação política.
No caso das AFP, cada trabalhador chileno deve alocar 10% de seu salário em sua conta de poupança individual, administrada pela AFP, e um montante adicional, entre 0,47% e 1,54%, como comissão por depósito das contribuições.
A Cuprum não informou, nem consultou seus associados para saber se eles estavam de acordo com que parte dessa comissão, tirada de seus salários (1,48% atualmente), fosse destinada para investir em políticos. As isapres também não fizeram isso, embora elas também obtenham seus ganhos de contribuições de previdência social obrigatórias.
Claro, eles têm o poder para seguir comprando mais poder. Tudo isso, com o nosso dinheiro.
Por: Daniel Matamala
(jornalista e apresentador da CNN Chile)
Publicado originalmente em Ciper Chile em 26.07.2016
(https://ciperchile.cl/2016/07/26/afp-el-poder-impotente/)
Tradução: Isabela Vargas (jornalista brasileira radicada em Santiago, no Chile)